segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Corrupção no Vaticano


Entrevista a Emiliano Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de Vatileaks





Isabel Nery

Jornalista
O dinheiro do Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e documentos reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder, poderá ser condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se “cansado”. Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e fuga de informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de Vatileaks.
Quais foram as descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram 53,2 milhões, mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A Cúria romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver em Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço nem para pobres nem para refugiados.
Como é que usam o dinheiro das esmolas?
Descobri que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou 200 mil euros de um hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um cardeal pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.
De onde vinha todo esse dinheiro?
Um dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das beatificações. O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom advogado para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana de las Dolores cobraram-se 482 693 euros.
Quer dizer que nos países pobres não pode haver santos?
Não. Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso. Mas o Banco do Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e depois mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.
O Vaticano é avarento?
O Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre quem tem contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não como uma Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer que se descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.
Vive num país que alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão sensível?
Em Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o Vaticano dentro do nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com a televisão, com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz jornalismo de investigação, como eu.
Conseguiu publicar artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu jornal. Em Itália é muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica. A comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira vez na história.
Ficou isolado com a publicação do livro?
Os meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio católica sugeriu que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já muita gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha revista.
Quem lhe passou a informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se conhecem. Algumas gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou destruir o Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o nosso trabalho.
Que leitura faz do facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.
Mas, lendo o seu livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um comunicador perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais poderoso do mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem problemas com as finanças.
Por haver demasiados vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido fica no Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível! É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu livro, Francisco mudou o sistema para haver mais controlo.
Está desiludido com Francisco?
Francisco e o Vaticano estão muito zangados comigo porque destruí essa propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E agora está sozinho. Tem muitos inimigos.
O Papa corre mais perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.
Tendo em conta tudo o que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se será capaz. Espero que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu livro não é contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar, não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte e Francisco quis mudar isso.
A popularidade ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.
Quais?
Quando mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI, anterior Papa] deu a sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do Vaticano e não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires. Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.
Como reagiu àquilo que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano e eu tenho um problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a edição do meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em público, na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro era mau para a Igreja.
Porquê?
Não percebo porque é um problema para a reforma que Francisco quer fazer. O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que o livro poderá ajudar no futuro.
Preocupa-o que os radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica e ganharem terreno?
Nunca me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar o mundo. Não sei se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema meu. Sou jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.
Ninguém o acusa de publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.
Nos processos que tem contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de ter revelado informação confidencial. Dizem que os meus documentos são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei mentiras. Se digo a verdade, não devo ter problemas com a justiça.
Mas está a ter.
Sim. A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas fiz outro trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo em tribunal do que no jornal.
Que pena poderão aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.
A possível ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa livre. Rege-se por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há um acordo entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode ter problemas com a lei italiana.
Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.
Sendo pouco provável a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a publicação deste livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a reputação é o mais importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque. Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema político se me acusarem.
O seu livro mudará alguma coisa?
Às vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do escândalo económico dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de euros no banco do Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o que escrever.
Quer dizer que não continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei entrevistas a jornais dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um jornal quis ouvir as minhas denúncias.
É Católico?
Sou agnóstico. (VISÃO)

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