segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Não leia obras de uma só escola ou tendência". Aconselha António Sérgio aos aprendizes de Filosofia

Filosofia, é "a luta do bom senso contra o senso comum" dizia Sérgio

«Ao aprendiz de filósofo [ao jovem aprendiz, pretendo eu dizer, e na minha qualidade de aprendiz mais velho] rogo que se não apresse a adoptar soluções, que não leia obras de uma só escola ou tendência, que procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como primário escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de os compreender a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do que se chama senso-comum [a filosofia é, em não pequena parte, a luta do bom-senso contra o «senso-comum»].




(...) Deverá pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às discussões ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como um indivíduo que nos lecciona ginástica procedendo ele próprio como um bom ginasta, e obrigando-nos a nós a fazer ginástica; é quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo da faina de elucidação dos problemas (...). Repito: seja a filosofia para o aprendiz de filósofo, não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma actividade de elucidação dos problemas. É esta actividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. (…) Pode ser muito útil para a vida prática o simples conhecimento do enunciado de uns tantos teoremas de matemática: porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.
Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro, o de nos mantermos aí eternamente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação, – conclua (...) que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandroso, mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e que se lhe impõe portanto uma atenção maior [nada há no mundo de tamanha rópia como o tom com que julga refutar um Mestre um pedaço de asno que o não entende; e o melhor processo, nessa primeira fase, é talvez o de refazermos por iniciativa nossa, com exemplos familiares da nossa própria experiência, a doutrina exposta pelo autor que estudamos, até que a tenhamos como coisa nossa, porque feita de matéria verdadeiramente nossa, e reconstruída pelo nosso espírito. [Quem sabe reproduzir uma teoria genérica, em elocução abstracta, mas não sabe reconstruí-la com a familiar experiência, não percebe real­mente o que está dizendo.» (António Sérgio, in Problemas da Filosofia de Bertrand Russell  (FONTE)

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