terça-feira, 6 de maio de 2014

O Crime que Salazar abafou

O crime de homicídio que Salazar abafou

Lisboa fervilhava de boatos. Nestes primeiros dias de Março de 1952, nos meios da oposição ao Estado Novo, nos escritórios de advogados, nas universidades, nos ministérios, nas redacções dos jornais, o assunto mais falado com a cautela que os tempos exigiam era o das festas em palacetes de Cascais com orgias homossexuais e drogas – em que participavam gradas figuras fiéis a Salazar, guardião da ordem e da moralidade do Regime.


Os jornais noticiaram com a parcimónia da ordem a morte de Carlos Burnay. O corpo fora encontrado no leito de um quarto da casa de família, em Cascais: o cadáver, de calças de pijama e tronco nu, tinha uma bala na testa e estava coberto até ao pescoço com a roupa da cama. A Polícia Judiciária fez chegar às redacções uma breve nota oficial que os jornais reproduziram: “Cerca de 40 indivíduos, incluindo sete mulheres, comprometeram-se em actos indecorosos, quer em abuso de libações e de costumes, quer em estranhas devastações na vivenda onde se encontravam.” A história tinha ingredientes picantes e irresistíveis à curiosidade: um menino-família, homossexual, fora encontrado morto em casa após uma noite de libertinagem que os costumes proibiam em forma de lei. Lisboa não falava de outra coisa. Carlos Burnay, de 25 anos, estudante de Direito, levava uma vida dupla. Era rico, culto, poliglota e interessava-se pelas artes. Tanto pisava com irrepreensível classe os requintados salões da alta sociedade como os bares clandestinos da capital. Coleccionava livros e pintura. Também comprava os amantes: pagava tenças mensais a homens da sua intimidade. Quando os pais se separam, Carlos escolheu viver nos arredores de Algés com o pai, Duarte Gustavo Nogueira Soares, visconde do Marco. A mãe, Ana Maria Burnay, viajava com frequência para o estrangeiro – ocasiões que ele aproveitava para dar no materno palacete de Santana, em Cascais, as festas a que chamava Serões da Amizade. A festa de Março de 1952 descambou num crime. Os participantes, segundo veio a apurara a Polícia Judiciária, emborcaram absinto e abusaram da cocaína. A mistura explodiu-lhes no cérebro. O mobiliário de estilo ficou em estilhaços e as faianças em cacos. Num dos quartos jazia o corpo do anfitrião. Uma brigada da Polícia Judiciária, manhã cedo, foi chamada ao palacete. O interior da Casa de Santana estava parcialmente destruído. Mas os investigadores estavam mais interessados no cadáver de Carlos Burnay. Sobre a cama, ao lado do corpo, estava uma pistola com uma bala na câmara e duas no carregador. Tudo dava a entender que Carlos se enfiara na cama e disparara um tiro na cabeça. Mas o homem que chefia aquela equipa da Judiciária – Fernando Luso Soares, que mais tarde abandonou a Polícia para se tornar num dos advogados mais disputados do País – estava muito desconfiado. Recebeu, dias depois, os resultados dos exames à bala retirada do crânio e à pistola encontrada ao lado do corpo: os testes de balística concluíram que o projéctil mortal não tinha saído do cano daquela arma. Carlos Burnay fora assassinado. A PJ descobriu que ele foi abatido numa casa contígua ao palacete e o corpo arrastado para o quarto. Todos quantos participaram na festa foram identificados e detidos. Os jornais noticiaram as detenções, mas a Censura impediu a divulgação dos nomes: entre os participantes muitos filhos de pias famílias do regime e também algumas figuras da oposição. A homossexualidade era proibida por lei. O Código Penal previa medidas de internamento para “vadios, mendigos, proxenetas e homossexuais”. Embalada pelas investigações do caso Burnay, a PJ desceu ao mundo escondido da prostituição masculina em Lisboa. Rusgas levadas a cabo em vários pontos da cidade resultaram em dezenas de detenções. O escândalo deixou aterrorizada gente de vulto: homossexuais de posição pagaram fortunas para não serem incomodados, outros partiram para longas férias no estrangeiro, outros casaram-se à pressa para afastarem suspeitas. A PJ tinha dois suspeitos do homicídio: a criada de casa e o marido. O inspector Luso Soares estava convencido de que a decisão de matar partira dela: a mulher sempre encorajou o marido a manter-se como amante do jovem aristocrata porque isso rendia uma mensalidade fixa. Quando soube que Carlos estava determinado a acabar com o negócio, mataram-no por vingança. O casal nunca confessou o crime – mas Luso Soares estava convencido de que, vergados sob a pressão da cadeia, acabariam por confessar tudo. Seria uma questão de tempo. Mas Salazar, chefe do Governo, mandou arquivar tudo: o casal foi libertado e os suspeitos de homossexualidade mandados em paz – e nunca mais se falou do assunto.
 CASO ARQUIVADO 
A PJ descobriu que um alto funcionário dos Negócios Estrangeiros passara a noite do crime com um empregado de um hotel do Estoril. Chamaram-no a depor. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Cunha, telefonou ao titular da Justiça, Cavaleiro Ferreira, que contactou o director da PJ, Alves Monteiro – e os três decidiram que o melhor seria levar o caso a Salazar. O chefe do Governo ouviu em silêncio os pormenores da morte de Carlos Burnay, a história das orgias e a vaga de prisões por homossexualidade. O assunto era desagradável ameaçava embaraçar o Regime. Salazar, que abominava escândalos, mandou arquivar o caso. A tese oficial da morte de Carlos Burnay passou a ser a do suicídio.
 A BEM DA NAÇÃO 
- Quando o caso foi arquivado, os homossexuais ilustres que tinham abandonado o País regressaram a Portugal. - Os meninos-família, obrigados a casamento a fim de calarem suspeitas, já bocejavam de tédio com as mulheres: finalmente puderam frequentar os amantes. - O País, a pouco e pouco, voltou à normalidade. O escândalo, nunca visto, está arrumado para sempre. - Ana Maria Burnay, mãe da vítima, deu instruções ao advogado António Maria Pereira para levar a julgamento o casal suspeito do crime. Os esforços do advogado foram em vão. O caso estava arquivado – a bem da nação

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